A comida entra em campo

Escrito por Rodrigo "Kiko" Afonso para Central da COP

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US$ 500 bilhões anuais em subsídios agrícolas precisam ser redirecionados em favor de sistemas alimentares sustentáveis.

Enquanto o mundo corre atrás da transição energética, uma outra mudança urgente segue fora do radar: a transição alimentar. A crise do clima afeta diretamente os pratos, as cozinhas, as culturas alimentares e o direito de milhões de pessoas de se alimentar com dignidade. De olho nesse jogo, a campanha Forests4Food, liderada pela Ação da Cidadania, leva a mensagem de que proteger florestas é proteger o direito à comida.

Hoje, mais de 735 milhões de pessoas vivem em insegurança alimentar severa no mundo, segundo a FAO (2023). Isso significa que uma em cada onze pessoas passa fome. A cada novo relatório, a curva cresce – impulsionada por conflitos armados e pelas mudanças climáticas. Estima-se que, apenas em 2022, mais de 148 milhões de pessoas foram afetadas por eventos climáticos que impactaram diretamente sua produção ou acesso a alimentos. Seca na África Oriental, inundações históricas no Paquistão, colheitas devastadas por ondas de calor na Europa e no sul da Ásia, incêndios florestais fora de controle no Canadá e na Austrália são alguns exemplos de paisagens que mudam junto com o mapa da fome.

Nesse cenário, as florestas se tornam ainda mais centrais como sistemas vivos que sustentam alimentos, culturas, territórios e modos de vida. Mais de 1 bilhão de pessoas no mundo dependem diretamente das florestas para se alimentar, segundo o Centro de Pesquisa Florestal Internacional (Cifor). Entre elas estão povos indígenas, comunidades tradicionais e pequenos agricultores que, há gerações, produzem diversidade sem romper o equilíbrio dos ecossistemas.

Apesar disso, a estratégia do jogo climático segue na contramão das florestas. Cerca de 10 milhões de hectares de floresta são perdidos todos os anos, boa parte deles para dar lugar a monoculturas voltadas à exportação ou à expansão desordenada da pecuária. O desmatamento, muitas vezes ilegal, destrói biodiversidade e compromete os ciclos de chuva, a fertilidade dos solos e a segurança alimentar das próprias regiões que o promovem. No curto prazo, a jogada pode gerar lucro. Mas no médio e longo prazo, gera fome.

É um ciclo contraditório onde a agricultura é ao mesmo tempo uma das principais causas e uma das maiores vítimas das mudanças no clima. Segundo o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), o setor agropecuário é responsável por cerca de 23% das emissões globais de gases de efeito estufa, considerando o uso da terra, desmatamento, emissões de metano e óxido nitroso. Já a FAO estima que, entre 2008 e 2018, os eventos climáticos extremos geraram perdas de mais de US$ 108 bilhões para a agricultura nos países em desenvolvimento, atingindo principalmente pequenos produtores e comunidades rurais.

O modelo agrícola dominante – baseado em monoculturas, uso intensivo de insumos químicos e produção voltada à exportação em larga escala – agrava a degradação do solo, a escassez de água e a vulnerabilidade ao próprio colapso climático que ajuda a acelerar. O IPES-Food, painel internacional sobre sistemas alimentares sustentáveis, aponta que esse modelo baseado na homogeneização e dependência de combustíveis fósseis é não só insustentável do ponto de vista ecológico, como extremamente frágil frente a choques climáticos e geopolíticos. Do jeito que está, o sistema alimentar global joga contra o planeta e testa seus limites.

É nesse contexto que a Ação da Cidadania criou a campanha Forests4Food, para influenciar decisões em eventos como a COP 30, o Comitê de Segurança Alimentar da ONU, as políticas nacionais de combate à fome e os planos climáticos de adaptação. O desafio vai além do carbono. É a reconfiguração dos sistemas que determinam quem come e quem não come – e a que custo.

Proteger florestas é garantir resiliência alimentar. É manter as fontes de água doce, conservar polinizadores, estabilizar o clima local, preservar sementes nativas e salvaguardar culturas alimentares que resistiram a séculos de colonização e extrativismo. É também reconhecer que os territórios mais preservados do mundo estão sob o cuidado de povos indígenas e comunidades locais, que são responsáveis pela proteção de cerca de 36% das florestas remanescentes do planeta, mesmo sendo apenas 5% da população global. Não se trata de romantizar modos de vida, mas de reconhecer que a sabedoria acumulada por povos da floresta, agricultores agroecológicos e comunidades tradicionais oferece respostas reais à crise múltipla que enfrentamos.

A pandemia escancarou a fragilidade das cadeias alimentares globais. A guerra na Ucrânia desorganizou o comércio de grãos. As crises climáticas estão colapsando a previsibilidade de colheitas. E, mesmo assim, ainda são investidos trilhões de reais em sistemas alimentares que empobrecem solos, esgotam recursos hídricos e concentram poder em poucas corporações. Dados do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) mostram que mais de US$ 500 bilhões por ano são investidos em subsídios agrícolas prejudiciais ao meio ambiente, enquanto a agroecologia, os sistemas alimentares territoriais e as economias baseadas na floresta seguem subfinanciados.

A fome é um sintoma desse cenário. Um termômetro social de um modelo produtivo em colapso. E para combater a fome, como propõe Forests4Food, é necessário transformar as bases desse modelo. Um sistema alimentar regenerativo requer investimentos em alimentação local e saudável, em proteção territorial e em florestas vivas.

Na COP30, a campanha Forests4Food quer buscar o reconhecimento formal da segurança alimentar como parte essencial da ação global contra as mudanças do clima. A iniciativa aponta para a necessidade de redirecionar os mais de US$ 500 bilhões anuais em subsídios agrícolas, que hoje incentivam modelos predatórios, em favor de sistemas alimentares sustentáveis e agroecológicos, que podem proteger florestas e fortalecer economias locais. A prioridade é garantir que os saberes e experiências das comunidades da floresta sejam considerados na formulação das políticas públicas. Afinal, as florestas não são obstáculo, mas infraestrutura viva para a sobrevivência. Em tempos de colapso, reconstruir o elo entre clima, floresta e comida não é mais uma escolha. É uma urgência.